Dona Mariquinha, a mulher que colecionava livros e amigos pelas ruas de Tucano
Dona
Mariquinha gostava muito de ler, escrever e tinha uma memória
espetacular. Ficou órfão de mãe com apenas cinco anos de idade quando
ainda morava em Campina Grande, estado da Paraíba.
Quando ia “desfilar” pelas ruas tucanenses, a elegância também a acompanhava. Seu figurino incluía sempre chapéus coloridos, que ela tinha muitos em casa, e colares presenteados por amigas e que ela usava, quase sempre, todos de uma vez.
Segundo Cristina, ela começou a andar pelas ruas há uns três anos, coincidentemente o mesmo período em que faleceu o seu protetor de criação. Muito popular, sofria de distúrbio desde criança e não se dava com ninguém que fosse designado para tomar conta dela. O fato de não ouvir bem e ser acostumada a atravessar as ruas sem olhar antes para os lados deixava Cristina sempre em alerta. O risco de um atropelamento era iminente.
“Mariquinha, vai se vestir!”, ela ouvia, fazia cara de quem nem se importava. Era isso: Ser independente de qualquer limitação. Morre, na minha cidade, “a louca”. Quantas vezes ouvi essa expressão e usei como quem divide o mundo entre os normais e os loucos? Lembro que certa vez discuti sobre a nudez de Mariquinha. Fiquei vendo os olhos na mesa cheios de vontade de limitar, regrar, problematizar. Pouco sabem que a nudez de Mariquinha é a de quem não sabe mais, porque esqueceu que um dia foi ensinada que nudez é proibida. E louca não sou eu que ando vestida sem querer estar? Loucos não somos nós que acordamos todos os dias sem querer acordar, comemos o que não queremos comer? Vivemos incompletos, insatisfeitos, buscando qualquer coisa que não sabemos o que é, mas que se afigura com um buraco enorme no peito. A gente faz um esforço danado pra ser livre, e esquece que a liberdade está em saber ser sem dificuldade. Mariquinha foi-se embora como era: sem dor. Sem medo. Perto de Deus. Tão perto de Deus e tão singular que faz as pessoas rirem diante da morte. Tão livre que não coube nesse mundo pequeno.
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Foto: Chris Arruda |
Não estou certo quantos livros a
história dela daria, mas dona Maria do Carmo Muniz, popularmente
conhecida como dona Mariquinha, era um personagem emblemático no
cotidiano das ruas e avenidas de Tucano.
Eu não a conhecia bem, e já lamento por
isso. Até mesmo para escrever esse texto, tive que recorrer à Cristina
Arruda, que conviveu muito próximo durante décadas com ela e,
gentilmente, cedeu-me algumas informações, tudo o que eu precisava para
prestar esta singela homenagem em nome do Portal Tucano.
Como jornalista, chamava-me a atenção os
objetos que ela portava em uma sacola, sua inseparável companheira, nas
suas andanças pelas ruas de Tucano. Livros, canetas, lápis, revistas…
Era curioso. Lembro-me de uma das raras vezes em que pude me aproximar
dela e ensaiar algum diálogo. Contudo, não me recordo mais de nenhuma
palavra que tenha trocado, mas tudo, à época, fora compreensível.
Dona Mariquinha gostava muito de ler,
escrever e tinha uma memória espetacular. Ficou órfão de mãe com apenas
cinco anos de idade quando ainda morava em Campina Grande, estado da
Paraíba, já “adotada” pela família Arruda. Na década de 60, o pai de
Cristina veio para a Bahia e a trouxe para morar sob a proteção dele.
Quando ia “desfilar” pelas ruas tucanenses, a elegância também a acompanhava. Seu figurino incluía sempre chapéus coloridos, que ela tinha muitos em casa, e colares presenteados por amigas e que ela usava, quase sempre, todos de uma vez.
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Foto: Chris Arruda |
Segundo Cristina, ela começou a andar pelas ruas há uns três anos, coincidentemente o mesmo período em que faleceu o seu protetor de criação. Muito popular, sofria de distúrbio desde criança e não se dava com ninguém que fosse designado para tomar conta dela. O fato de não ouvir bem e ser acostumada a atravessar as ruas sem olhar antes para os lados deixava Cristina sempre em alerta. O risco de um atropelamento era iminente.
Mas, surpreendentemente, aos 75 anos de
idade, foi um infarto agudo do miocárdio, costumeiramente chamado de
ataque cardíaco, que a arrematou na última sexta-feira, dia 22 de maio,
embora não se queixasse de nenhuma dor.
Ser fotografada também a agradava. E eu
não tive a oportunidade de clicá-la. O prazer de dona Mariquinha era
também alimentado por amigos, que doavam revistas, livros, folhetos e
fotografias. Costumava ir comprar com o próprio dinheiro algumas coisas
no comércio, mas as pessoas, geralmente, não cobravam. Em outras
oportunidades, seu desejo pelos objetos era mais rápido que a atenção
dos funcionários.
Na internet, diversas pessoas lamentaram a partida repentina e
inesperada deste ícone na história do município. A jovem Eva Cidrack
postou na sua página pessoal no Facebook uma mensagem digna da
homenageada e por isso vamos compartilhá-la aqui no Portal Tucano.“Mariquinha, vai se vestir!”, ela ouvia, fazia cara de quem nem se importava. Era isso: Ser independente de qualquer limitação. Morre, na minha cidade, “a louca”. Quantas vezes ouvi essa expressão e usei como quem divide o mundo entre os normais e os loucos? Lembro que certa vez discuti sobre a nudez de Mariquinha. Fiquei vendo os olhos na mesa cheios de vontade de limitar, regrar, problematizar. Pouco sabem que a nudez de Mariquinha é a de quem não sabe mais, porque esqueceu que um dia foi ensinada que nudez é proibida. E louca não sou eu que ando vestida sem querer estar? Loucos não somos nós que acordamos todos os dias sem querer acordar, comemos o que não queremos comer? Vivemos incompletos, insatisfeitos, buscando qualquer coisa que não sabemos o que é, mas que se afigura com um buraco enorme no peito. A gente faz um esforço danado pra ser livre, e esquece que a liberdade está em saber ser sem dificuldade. Mariquinha foi-se embora como era: sem dor. Sem medo. Perto de Deus. Tão perto de Deus e tão singular que faz as pessoas rirem diante da morte. Tão livre que não coube nesse mundo pequeno.
Josevaldo Campos
Redação Portal Tucano
Foto: Chris Arruda
Foto: Chris Arruda